Sunday 21 June 2009

Dramaturgo bom é dramaturgo morto? II


por Cássio Pires
Abril de 2009



Uma tentativa de resposta à pergunta da Cia Les Commediens Tropicales


Amo os mortos, pelo tanto que me ensinam sobre o teatro e sobre a vida. Pelo dever que o apaixonado se impõe, me faço voltar e voltar a ler uns tantos dramaturgos que há muito ou há pouco já se foram e que sempre me contam as mesmas histórias, mas, que, no entanto, sempre me falam sobre algo novo.
Por essa novidade que cada velho ou jovem clássico contém em si, admiro aqueles que se dão ao trabalho de encenar os textos de outrora e de alhures. Seja pela leitura de um contemporâneo meu para um desses textos, seja pelo brilho que um ator dá a um personagem, ou seja até por uma fala que é dita de forma insuspeita, numa grande montagem de um texto canônico sempre haverá a possibilidade de certas descobertas que podem me fazer deixar a sala do teatro de jeito diferente do que entrei. Por isso, sim, dramaturgos mortos, lidos ou encenados, podem ser bons. Desconsiderar a história e a tradição é uma das grandes bobagens que alguém pode fazer.
Mas tenho comigo que a dramaturgia de nenhuma outra época e de nenhum outro espaço pode dar conta de representar o que sinto aqui e agora. É claro que sempre farei paralelos entre os dilemas de Shakespeare ou Kleist e os dilemas de meu tempo. Mas só uma dramaturgia feita aqui e agora é capaz de representar plenamente o espírito de meu tempo e de meu lugar. Viver apenas de história e de tradição é um erro tão grande quanto desconsiderá-las. Amo os mortos pois eles me ensinam a falar, não porque quero que eles falam por mim.
O mais medíocre dos dramaturgos vivos tem, sobre um mestre do passado, a possibilidade da vantagem provisória de escrever a partir do que nos perturba e nos espanta agora. Por isso, pra mim, a dramaturgia mais importante sempre é a nova, pois só ela pode tornar plena uma arte como a do teatro que lida e goza com a dor e a delícia da efemeridade. Se o teatro só se dá no aqui e agora da representação, é a partir de tudo que está subentendido nesses advérbios que ele precisa se fazer. A história mesma nos ensina que todo grande teatro foi pautado no que então era nova dramaturgia.
Até certo ponto, muitos dos que fazem teatro no Brasil de hoje parecem dar ouvidos a essa questão. Abra-se, a esmo, um guia de peças e ver-se-á que fazemos muitas peças criadas a partir de novas dramaturgias. No entanto, e aqui falo de um paradoxo, parece que poucos entenderam ao o que estão dando ouvidos: o que estamos produzindo hoje é, sim, uma nova dramaturgia. Há pelos menos duas décadas, volta e meia os jornais de grande circulação publicam matérias em que jornalistas culturais lançam questões do tipo “onde estão os novos autores?”. Variações desta pergunta reverberam entre os estudantes dos cursos de teatro e nos fóruns virtuais da internet. Ainda insiste-se na idéia de que dramaturgia é apenas e tão somente a arte de um sujeito que escreve bons diálogos para serem postos em cena. Queremos, talvez, novos “Nelsons Rodrigues”, novos “Tchekhovs brasileiros”, três ou quatro poetas dramáticos aos quais possamos chamar de gênios e aos quais possamos consumir em forma de livros, entrevistas, encenações e, por fim, boxes especiais de dvds.
Talvez a dramaturgia e o teatro que estamos produzindo sejam poucos para representar o mundo onde vivemos. Mas creio que as perguntas que vem sendo feitas sobre a dramaturgia que fazemos são piores do que essa dramaturgia. E por assim o serem, fazem-na pior. Enquanto ansiamos por novos “gênios” e lamentamos a inexistência dos mesmos, estamos perdendo a oportunidade histórica de discutirmos o que fazemos. Enquanto propalamos a torto e a direito que não há dramaturgos, nos esquivamos de pensar sobre essa grande quantidade de dramaturgia que vem sendo produzida por esses “não-dramaturgos”.
Para além de um tímido debate restrito ao ambiente acadêmico, este oprimido pelas imposições de órgãos reguladores da educação superior que desestimulam o verdadeiro pensamento ao obrigarem pesquisadores a produzirem papers de ocasião ou a organizarem atividades que possam ser “mesuráveis” em termos estatísticos, praticamente não há espaço para o debate sobre o que e como estamos fazendo uma nova dramaturgia. Quantos de nós estamos efetivamente discutindo as inúmeras dramaturgias criadas pelos coletivos teatrais? (o pretenso “gênio” de Molière ou de Brecht é resultado direto das ligações destes artistas a coletivos teatrais de seus respectivos tempos); Quantos de nós pensamos sobre as dramaturgias criadas a partir da adaptação de velhos motes? (Shakespeare fez praticamente toda sua a obra teatral a partir da re-escrita de motivos greco-latinos e medievais ou a partir da história da monarquia inglesa); Quantos de nós pensamos sobre as dramaturgias criadas principalmente não a partir de um material literário, mas a partir do improviso, da interação com o público, da encenação e do ator? (são esses os terrenos da Revista, da Commedia dell´arte e do Happening, para ficar em três exemplos de tópicos que integram os programas de nossos cursos de história do teatro); Quantos de nós, por fim, nos damos ao trabalho de discutir efetivamente sobre o que falam, como falam e como trabalham os dramaturgos que seguem trajetórias mais individualizadas?
Para mim, em suma, a questão já não é se dramaturgo bom é dramaturgo morto. A história recente de nosso teatro já respondeu à pergunta ao enveredar pela tentativa de fazer uma nova dramaturgia, seja ela uma releitura de um circo-teatro, um espetáculo de dança-teatro, ou um texto sobre um fim de um casamento escrito por um jovem autor. Esse nova dramaturgia não só é algo bom, mas sim decisivo para um teatro que queira ter qualquer tipo de relevância dentro de uma sociedade. O problema agora é como estamos lidando com essa nova produção dramatúrgica, em tempos como o nosso que transformaram o debate propriamente estético em “frescura de intelectual”. Para além do debate (indiscutivelmente necessário) sobre políticas culturais no país (vejam-se as discussões recentes sobre a Lei Rouanet e a Lei de Fomento), é preciso que voltemos nossos olhos também para o fato de que o que estamos fazendo é, sim, dramaturgia e que ela não pode ser irrefletida.
A grande dramaturgia com a qual sonhamos não nascerá de perguntas que se querem sagazes, mas que em essência são nada mais que subprodutos de um “debate cultural” animado por uma indústria midiática que é a um só tempo filha e mãe do que chamamos sociedade de consumo. É essa indústria que anseia pela “aparição espontânea” de “gênios para consumo”, capazes de estimular o mercado editorial e o show-business. A grande nova dramaturgia só virá num movimento de contramão da lógica estabelecida: de uma prática continua de nova tentativas dramatúrgicas (e novo aqui não significa, evidentemente, aquilo que a burguesia classifica como “original”) alimentadas pelos debates sobre o que fazemos. Nunca, em nenhum campo artístico, houve genialidade que brotasse em terra que não fosse regada as fartas por uma produção que se deu a refletir a si mesma.

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